DESMANCHE E
REESCRITA DO CORPO EM PINA BAUSH
- procedimentos
de repetição e colagem -
Dirce Helena Carvalho
Corpos
translúcidos, diáfanos, transparentes, atravessam o espaço de ‘ensaio’ dançando
histórias de vida, histórias inventadas, histórias criadas coletivamente em perpetuum móbile de idéias, de lugares e
não-lugares, de vazios, de vácuos, de (dês) referenciações,de ancestralidades,
de memórias, de imanências, de
compartilhamentos, de corpos inscritos em
histórias de vidas... Dia de Encontro!
Dia de PINA BAUSH!
Dançamos
todas estas histórias e, fulgurantemente, as tantas histórias dançadas por
PINA.
Corpos
que se comunicam dançando o ENCONTRO, a partilha, celebrando a arte da vida ou
a vida na arte. Seria arte?
Do
Lamento de Imperatriz, da Mazurka de Fogo, Da Sagração da Primavera, com
música de Stravisnski, que à época provocou grande escândalo no teatro de
Paris. Obra emblemática e quando revisitada por Pina Baush , altera
definitivamente a História da Dança. Poesia, vertigem, medo, angústia... Os
estranhamentos nas inúmeras histórias dançadas por Pina: histórias de diferentes
povos como nas AGOURENTAS
carcaças de baleias dançadas no Tei
Chan, ou ainda, dos efeitos de estranhamentos no Lamento
da Imperatriz e em Barbe Bleue ,
obra que tem em sua trilha sonora árias cantadas por uma soprano e um baixo.As
dissonâncias entre música e as ações corpóreas dos bailarinos reafirmam a
estética da descontinuidade e incompletude, ao mesmo em que as conturbadas
presenças são quase que imensuráveis. Pina
desafia as leias da física com sua dança termodinâmica fazendo transitar em
consonância e (dês) consonância a dynamis
– movimento em contínuo e a therme – energia.
Pequenas
células extraídas de diferentes obras de Pina são compartilhadas pelo grupo e
postas em jogo. A decupagem de pequenas células exige de cada um de nós acuidade
visual para a apreensão da estética baushiana. Eixo. Enraizamento dos pés. Não
lutar contra a gravidade. O desequilíbrio no equilíbrio. Os espasmos, os graus
de potências, os estados e as intensificações de gestos simples.
Células
de movimentos ou frases de movimentos, ou um pequeno gesto, ou , ainda, uma palavra ,uma frase, uma ação sonora ... São
estas as composições iniciais a partir de estímulos problematizadores que na
poética de Pina são colocadas aos
bailarinos, tais como: Dance o seu medo, Dance a sua angústia, Dance a vida,
Dance a morte. Questões das mais
genéricas as mais específicas. Em nossa dança a questão-problema foi colocada
por Evaldo: Dance alguma coisa marcante
de sua infância.
A
composição de minúsculas partituras são compartilhadas
com o grupo. Um dos integrantes assume o
papel de diretor e faz a edição de nossas danças pessoais somadas as células de
movimentos extraídas dos trabalhos de Pina em procedimentos de REPETIÇÃO
E COLAGEM. E mais uma vez dançamos a nossa dança.
De que arte
estamos falando? Seriam
encontros, partilhas, trocas, memórias pessoais? Ritualidades?
Perfomatividades? Teatro performativo? Teatro pós-dramático? Hibridações?
Desterritorializações? Desmanches? Arte
da experiência?
Inúmeros
conceitos da arte contemporânea estão inscritos nos procedimentos adotados
neste encontro. Apenas enunciá-los neste escrito, sem, portanto, debatê-los.
Esta é a ideia.
Uma
arte que compartilha, reparte, comunica, socializa, celebrando suas ancestralidades em meio aos cataclismos da
contemporaneidade... “A corda do pai” (Janô), a corda de nossos ancestrais, da memória de
nossas ancestralidades marcadas em nossos corpos . Olho no meu caderninho à
época de um dos muitos encontros com
Janô (Antônio Januzelli ) e Selma
Pellizon e leio uma frase do Mestre : “estamos
encharcados de banalidades”. Como esvaziá-las> Como dirimi-las? Como nos
libertar das couraças?Como chegar ao vazio pleno? A arte de silenciar. O ritual
do silêncio. Fazer arte sem imposições somada às diferentes percepções de todos
que lá estavam.
Nada escasseava. O modelo de ação, a subversão
do próprio modelo, mas que ainda permanecia na memória corporal, a memória de
nossas infâncias em danças arrebatadoras que comunicavam nossas dores e nossas
alegrias em procedimentos de REPETIÇÕES
e COLAGENS.
Ao
final, estávamos plenos, experimentando o Vazio Pleno. Libertos dos encharcamentos,
das couraças que tanto nos afligem. Enfim, acudidos pela arte de fazer arte.
Desligados
do tempo mecânico, alteramos o sentido de temporalidade, vivendo e revelando o
presente como a única realidade tangível na criação da experiência coletiva.
A
arte compartilhada em PINA! Arte da experiência
coletiva tão resguardada por , Oiticica em
seus Penetráveis . O mesmo Hélio que veste a
arte com seus Parangolés junto ao
pessoal da Mangueira e Lygia Clark com o
seu Caminhando , desligando-se de
quaisquer mitos externos para viver o tempo imanente, o tempo do ato corpóreo
fazendo-se nele mesmo. O corpo torna-se o receptáculo da obra. A obra é o corpo
atingindo o “singular estado da arte” (Lygia Clark).
Arte que pode ser feita por quem quiser
fazê-la. Não mais existe o espectador passivo. Ele é partícipe da obra. Artistas
e não-artistas? Esta é a grande reviravolta da arte contemporânea, a saber, tirar
o espectador do lugar-comum e compartilhar a arte no espaço-mundo diluindo
as fronteiras entre arte e vida. A arte torna-se a experiência coletiva.
Hoje,
na experiência do corpo compartilhado em
PINA, subvertemos a própria arte. Foi lindo ver Célia , artista do corpo, dançando
nos andaimes da sala de ensaio. Como foi
lindo também ver a dança dos colegas que se denominam não-atores. Mas o que é
ser ator? Afinal a áurea do artista e da obra de arte já foram problematizadas no início do século XX pelas
vanguardas europeias. Duchamp , integrante do dadaísmo, ao expor sua Fonte (Urinol), subverte os três elementos da comunicação estética: a obra, o artista e o
espectador. Qual é o lugar da arte? Quem é o artista? O que é a obra de arte? A
partir do novo paradigma inicia-se
uma nova História da Arte.
Seria
o artista um ser aurático, ‘escolhido’ entre tantos outros? Esta
visão romântica do artista não mais se coaduna a concepções da arte como experiência
coletiva.
A
dialética das tendências contemporâneas negam os cânones tradicionais da arte.
Portanto, pensar que o artista é um ser privilegiado, envolto em uma áurea é,
nos dias atuais, reforçar os padrões de comportamentos divulgados pelos meios
de comunicação. A arte não tem mais a natureza mimética, tão menos ilustrativa.
A
incompletude, o estranhamento são chaves importantes para o entendimento da
arte contemporânea, pois tiram o espectador do lugar-comum, incitando-o a
pensar sobre a obra em suas inúmeras leituras.
Pensar
em projetos extensivos que dêem conta de experiências compartilhadas na arte,
possibilitando a ampliação de repertórios corporais no desmanche de couraças,
de corpos padronizados, mecanizados, é, sem dúvida, uma das prerrogativas da
pedagogia teatral.
Somos
todos FAZEDORES. Não há mais lugar para espectadores passivos, pois quando a
arte não os convida a dançar , os instiga
a preencher os vazios da obra. A obra aberta, inacabada, é, portanto, uma das características da arte contemporânea e,claro, de Pina Baush.
Não há, portanto, separações, pois a arte que
aqui exponho não exclui , ao contrário,
ela não separa o homem do homem
colocando todos em movimento nos convida a dançar inscrevendo uma
dramaturgia corporal de pertencimento. Como hoje, no encontro com PINA.
Dançar
com Pina em procedimentos compartilhados, repetidos e colados, nos proporcionou
vivenciar a arte como EXPERIÊNCIA. A experiência do corpo coletivo em desmanche
e reescrita. Uma reescrita que se fez no exercício de alteridades para a
apreensão de si e do outro na partilha
das diferentes percepções em PINA.
Ao
dançar PINA dancei o Encontro!